Um MC Competente Inconsciente


Frequentemente, quando nos pedem a opinião sobre um MC que começou a rimar há relativamente pouco tempo, é-nos difícil fazê-lo. Por vezes, os temas são demasiado dejá-vù e as rimas estão mal construídas. Por outras, denota-se um esforço por fazer palavras rimar implícito na maneira como as rimas estão arquitectadas. Em qualquer dos casos, denota-se sempre que há uma grande disparidade entre os MCs mais evoluídos e aqueles que ainda estão a aprender.

Há determinadas fases pelas quais um MC tem de passar se quiser dominar o processo de escrita e conseguir-se expressar da melhor maneira, combinando a forma como escreve com o skill e flow que só vem com o tempo e a aprendizagem. São elas:

Incompetente Inconsciente
O MC tem dificuldade em escrever para um beat, quando grava fica fora de tempo, tem um flow quadrado que nunca varia e nenhum skill. Vai gravando sons que não lhe soam bem, mas não se apercebe porquê nem o que pode fazer para melhorar. Não entende onde é que está o problema. Será o flow? Será a dicção? Será o beat? Ele é incompetente porque não consegue dominar o beat e inconsciente porque não consegue descobrir porquê.

Incompetente Consciente
Nesta fase, o MC começa-se a aperceber de alguns factores chave para que as gravações comecem a soar bem. Apercebe-se que há certas alterações que pode fazer na forma como escreve que lhe dão mais liberdade no flow: já não escreve rimas 4x4. Descobre novas formas de fazer os versos rimar. O processo de descoberta e melhoria faz-se através da emulação de truques que escuta noutros MCs. Reproduzindo-os, desvenda as engrenagens da arte. Ainda que continue incompetente, pois ainda não é capaz de inovar e precisa de recorrer ao que já existe para evoluir, já está consciente dos aspectos em concreto que precisa de melhorar. Sabe onde procurar.

Competente Consciente
À medida que se vai familiarizando com os processos de criação, começa a adquirir as ferramentas para fazer exactamente o que tem em mente. Já não é escravo do pouco que sabe fazer – já é capaz de construir e inovar, fazer coisas que nunca tinha feito antes. Compreende que o beat lhe dá um contexto e pode favorecer determinado tipo de flow, e que esse tipo de flow pode ser explorado da melhor forma com determinado tipo de rima. Mas ainda precisa de fazer um esforço consciente para conjugar todos esses factores, o que leva a que certas músicas soem mecânicas, demasiado tecnicistas e com falta de fluidez. Já sabe como fazer o que quer fazer, pelo que já se tornou competente, mas ainda não ganhou os automatismos necessários à arte de rimar, pelo que ainda se nota um esforço consciente.

Competente Inconsciente
Estes MCs ouvem o beat e, quando escrevem, já têm na cabeça que tipo de rimas querem e como vão colocar o flow. Ainda antes de gravar, a música como um todo já existe dentro da sua cabeça. Conseguem-se focar unicamente na mensagem que querem transmitir, pois a escrita, o flow e o skill já lhes saem automaticamente. Todo o esforço está orientado no sentido da inovação e da criatividade. As rimas soam fluentes, quando os escutamos estamos a ver um filme sem sequer nos apercebermos que as coisas estão todas a rimar e que o flow está milimetricamente colocado. Só somos surpreendidos quando o MC escolhe surpreender, e não porque determinada rima não lhe saiu bem ou porque o flow descarrilou. A sua competência é já inconsciente, é um automatismo que lhe permite a liberdade para o nível seguinte.

Eu diria que poucos são os MCs na tuga que se encontram no estado de Competência Inconsciente. E a maioria deles, nem sequer são muito criativos. O facto de já dominarem todos os aspectos do MCing e portanto terem a liberdade para inovar, não quer dizer que o façam ou sequer que sejam capazes de o fazer. Mas quando os escutamos, sentimos que rimar, para eles, já é tão natural como respirar.

No outro extremo, temos muitos MCs, principalmente da nova escola, que se preocupam muito com a inovação sem antes se dedicarem a aprender a dominar todas as ferramentas necessárias. Perdem demasiado tempo à procura do assunto sobre o qual nenhum MC falou ainda, mas escrevem barras com palavras a mais, saem de tempo, perdem o focus do tema para forçarem a rima ou perdem o focus da rima para forçarem um tema.

Um bom MC pode atravessar estas quatro fases mais depressa ou mais devagar, mas tem de o fazer obrigatoriamente. Repetidamente. A quarta fase não é um estado, é um ciclo, pois assim que MC descobre uma nova limitação, torna a percorrer o ciclo. Nunca acaba.

Um MC medíocre chega à terceira fase e volta à primeira – limita-se a limar algumas arestas antes de cruzar os braços e se declarar o melhor MC do mundo, tornando-se assim inconsciente da sua incompetência.

Um mau MC nunca sai da primeira fase – e é destes que temos às carradas, povoam a maioria das net tapes que por aí circulam com egos do tamanho do mundo e sem qualquer noção das suas limitações.

Mais do que uma forma dos “críticos” analisarem os artistas, eu diria que a verdadeira utilidade deste modelo (muito utilizado em psicologia) é ser uma forma de auto-aprendizagem.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem Joana;)
Bom trabalho!

Dizzy - Som Mudo

Nicolau disse...

Thanks ;)

Anónimo disse...

Gostei!

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