Portugalidade... numa perspectiva HipHopiana

“É cultural, fado, Fátima e futebol
Lança fogo no alto para entreter o povo todo
É a máxima de Portugal
É fundamental, subsídios para a corrupção
Lança fogo no alto para entreter o povo todo
É a sátira de Portugal”

in «Portugal Surreal» de Dealema

Neste trecho, Dealema identifica três particularidades do ser-se português. Com o fado, Fátima e futebol podemos explicar algo da cosmologia social portuguesa, à luz de um conjunto de práticas, de acções, geradas neste nosso espaço Portugal.

Estivemos sem respirar a liberdade, já após a Implantação da República, durante 48 anos (1926-1974)! Com esta privação de elevado índice temporal, é natural que marcas muito profundas persistam até hoje. O povo ficou com a sua vida afectada pois sofreu o autoritarismo, a castração e repressão, os excessos do nacionalismo, o drama do colonialismo e o conservadorismo de um regime com um impregnado teor católico e tradicionalista, comandado pela figura do grande chefe Salazar. A máquina repressiva, com a PIDE na dianteira, controlava as massas com a censura, com a propaganda do regime, semeando o medo e impondo a sua doutrina através de organizações como a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa. A moral reflectia-se nos princípios da Igreja Católica.

O totalitarismo e a consequente falta de pluralidade na sociedade portuguesa atrofiou, em grande medida, quaisquer proeminências ao nível das ciências, tecnologia e cultura. É que Salazar vivia aterrorizado com a modernização de Portugal, colocando-lhe rédea curta, sob pena de ver perder os valores religiosos e a componente rural e atrasada (com altas taxas de analfabetismo) característica do país. Assim, a transformação cultural não era uma realidade e o país distanciava-se cada vez mais do avanço dos restantes países europeus.

O fado é português. Logo, era uma marca patriótica e representava o tal tradicionalismo que ia ao encontro dos interesses do regime. Além disso, os fados faziam a apologia da vida madastra, pobrezinha, humilde, sofredora, que exige sacrifícios, mas sempre com a regra de ouro de ser politicamente correcta. Fátima também é conectável com as particularidades de ordem nacional e conservadora, representando aqui o aspecto específico da religiosidade. A divindade, a adoração, a devoção a Fátima seria a metáfora pretendida para o próprio regime. Salazar intitulava-se o “salvador da pátria”, engajado apenas com a nação, desejando a aceitação do povo, ainda que usasse a repressão para cinicamente a obter, assim como uma fidelidade sem limites baseada num cargo praticamente vitalício, onde toda a oposição era praticamente silenciada.

O futebol era tido como a componente lúdica, uma espécie de versão moderna dos circos romanos. As pessoas esqueciam a vida de miséria nos momentos em que se concentravam nesse desporto. O facto de os futebolistas portugueses mais os nascidos nas colónias serem de eleição e terem granjeado feitos e conquistas importantes, quer ao nível de selecção quer ao nível de clubes, ajudou a que o regime sentisse a tentação de espelhar essa glória e esse brio através dum forte apego, marcadamente oportunista e interesseiro. Aliás, fado e Fátima também eram uma distracção para que se camuflassem os problemas e o estado do país.

Mas hoje faz ainda sentido essa tríade? Se não faz, facilmente se encontram substitutos. Porventura, o fado já não goza da popularidade que tem actualmente a designada música pimba. Mas ambos os géneros se aproximam em certos pontos. A música pimba chega às massas, tem um cariz totalmente virado para o entretenimento e canta alguns tópicos da ruralidade vigente em Portugal. Ao contrário do fado, a música pimba tem a agravante de ter uma péssima qualidade. Apesar de sermos ainda um país muito católico e devoto ao culto de Fátima, mesmo quando as pessoas se desligam da religiosidade são-nos apresentadas “virgens” e divindades de carne e osso prontíssimas a estupidificar-nos! A máquina propagandística serve aqui os interesses económicos através da mediatização de certas pessoas, o que conduz à idolatração e à vontade de imitação, em virtude da condição terrena dos adorados. Todavia, a fatídica conclusão é que tal como em Fátima também aqui se vive a ilusão. E o futebol está tão na ordem do dia que nem é necessária profundidade sobre isto. Há intelectuais que o consideram como cultura. Mas é inegável que o futebol ainda hoje é usado e está próximo dos meandros políticos, correndo sempre o risco de ser instrumentalizado. Para além do pressuposto de continuar a ser o circo romano dos tempos modernos. Vide Cristiano Ronaldo em Madrid! As pessoas que assistiram à sua mega apresentação no Estádio Santiago Bernabéu, aquando da sua chegada ao Real, muitas delas são com certeza os novos pobres, vítimas do desemprego, que anseiam pelo “pão” mas que só lhes é dado o entretenimento, vulgo “circo”.

Em Portugal, onde o desemprego aumenta, assim como as desigualdades e onde a corrupção é uma realidade, a portugalidade ainda se reflecte nos pontos enunciados por Dealema. 36 anos depois do insípido período ditatorial, 36 anos depois de nascer o Hip Hop no Bronx, o nosso país mudou muito e depressa como sociedade em alguns parâmetros. Mas quem diria que a tal tríade – com algumas nuances atrás explicadas – se manteria ainda actual mais de três décadas depois?! Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Portugal.

Cabe-nos a nós, geração do Hip Hop, pegarmos na filosofia que rege a nossa cultura e inspirarmos e ajudarmos este país a recuperar a decência. Que do Hip Hop, com este brilhante exemplo de Dealema, continue a brotar gente da estirpe de Zeca Afonso, de Fausto, de Godinho, entre outros, que ajudaram com a sua arte, com a cultura, a combater o mal instituído em Portugal. Porque todos queremos um país melhor!

4 comentários:

Nicolau disse...

Eu não gostei, eu adorei!! É exactamente isso: o Hip Hop tuga precisa de ocupar o seu lugar como catalizador da mudança de que o país precisa, precisa de inspirar e motivar, precisa de dar AQUELE salto! Não é o salto para o mainstreem, é o salto qualitativo para o tipo de movimento que faz a diferença. Como diz o Presto na "Não Pára", o Hip Hop está a passar de moda e ainda bem, porque "é um ciclo que se renova".

New school needs to step their game up!

Excelente texto Druco ;)

Druco disse...

Obrigado, Joana! :) É mesmo verdade... Oxalá o Hip Hop continue a posicionar-se como um movimento de responsabilidade também.

Cumps! ;)

Anónimo disse...

Genial!!

tens todas a razao, hip hop pode fazer muito mais a diferença do q a maioria das pessoas pensam! resta-nos a nós, amantes da cultura, erguer bem alto a sua bandeira! e por vezes basta pequenas diferenças, pequenas acçoes, pra dp poder passar para as de maior escala!

Druco disse...

Obrigado pelas palavras, Anónimo! :) Eu acredito que o Hip Hop pode fazer muito! Basta investir-se nisso.

Cumps!

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