Gifted Unlimited Rhymes Universal

Certa vez, José Saramago afirmou que não acreditava na morte como passagem de um estado para outro, mas cria simplesmente na morte autêntica, na sua inevitabilidade, na dureza do hoje estamos e do amanha já não estamos. Infelizmente, o autor desta reflexão já não está connosco, bem como tantos artistas que são colhidos pela velha senhora de negro. Todavia, nas palavras a que recorri por empréstimo de Saramago, através da minha memória, reside uma apaziguadora consolação. Os génios morrem, mas o seu legado fica para sempre.

Serve a introdução sobre o pensamento de Saramago e a sua ausência terrena para prestar homenagem a um artista do Hip Hop que também ele há pouco tempo faleceu. Porém, enquanto nos lembrarmos das pessoas e elas viverem permanentemente no nosso peito, elas não estarão mortas. E quem pode esquecer ou deixar de ter a viver no peito o nobilíssimo Guru?!

Gifted Unlimited Rhymes Universal nasceu como Keith Edward Elam a 17 de Julho de 1961 (embora haja versões que indiquem que nasceu em 1966, mas segui como mais confiável a data que o sobrinho de Guru avançou no documentário que fez em sua homenagem). Guru é originário de Boston, filho do primeiro juiz negro da cidade e a sua mãe era co-directora de uma rede de bibliotecas públicas pertencentes ao sistema escolar. O jovem Keith formou-se em Gestão de Empresas e parecia destinado a ter um futuro risonho na área em que se graduara. Porém, a música mudou-lhe a vida. Apaixonou-se pelo rap, decidiu investir nesse sonho e perdeu-se quiçá um bom gestor. No entanto, o rap e o Hip Hop ganharam definitivamente um dos seus maiores ícones de todos os tempos!

Guru será incontornável na História do movimento e da música porque explorou o seu imenso talento, fazendo parelha com o prodigioso DJ Premier, num dos duos mais adorados pelo público. A química resultante entre o MC e o DJ era de tal maneira perfeita que não havia maneira de um brilhar mais do que o outro. Parecia predestinação o facto de se terem juntado, o que foi maravilhoso para o Hip Hop, pois as qualidades de ambos deram projecção e crédito à cultura, que tinha ali dois baluartes a protegê-la. A discografia de Gangstarr é ímpar e são incontáveis os clássicos que consecutivamente o duo foi colocando nas ruas.

A inteligência nas rimas e a postura na indústria musical trouxeram o respeito para Guru. Catalogado como o rei do “flow monótono”, fez disso um estilo e no ritmo pausado, que batia certinho com as majestosas batidas de Premier, lançava as suas linhas cortantes, irónicas, pujantes, pesadas de consciência. A voz inconfundível de Guru era das vibrações mais lúcidas e harmoniosas que se podia escutar no meio do xinfrim que a certa altura começou a ser o rap. Quase funcionando como um guardião de uma certa essência da fundação, das raízes, Guru mantinha-se coerente com as directrizes dos primórdios do Hip Hop, permanecia fiel à sua gente e suas dificuldades, sem nunca colocar reservas ou mordaças ao seu rap. Frontal, afirmando as suas convicções e opiniões, nunca teve a tentação de se auto-moderar, tendo em vista vender mais discos. É que apesar de toda a admiração mundial por Guru e Premier eles nunca venderam o que outros artistas do rap, mais promovidos e badalados pela máquina da música mas de tom mais ligeiro, conseguiram alcançar.

Para Guru, o mais importante sempre foi a arte e não o negócio. Gangstarr exemplifica isso na perfeição. Excelentes discos, soberbas críticas, a aclamação dos fãs de rap mas também da música, em geral. No entanto, Guru era um espírito inquieto e não lhe bastava a parceria com DJ Premier. Reforçando o apreço pela música antiga, ele inicia um projecto de nome “Jazzmatazz”, que pretendeu reunir músicos já com história e que admirava, fazendo simultaneamente o intercâmbio com jovens talentosos que despontavam. Toda a paixão pela música e magnimidade pela arte a ser posta em evidência por parte de Guru. A saga foi um sucesso que coleccionou vários entusiastas e prestava-se a celebrar a fusão do rap com os caminhos do Jazz e da Soul fundamentalmente, mas também a convivência e troca de experiências entre os antigos e os novatos. Guru era o cicerone, o mediador, o mentor. O mestre impulsionador justamente.

A vida de Guru, porém, não se fez sem atribulações. Para além do seu feitio complicado com os meandros da indústria musical, o rapper cansou-se (ao que consta) do projecto Gangstarr e decidiu dar um tempo. Correram boatos que o duo se havia extinguido e que Guru e Premier tomariam caminhos individuais. Ambos formaram as suas editoras e Guru junta-se ao produtor Solar, com quem estabelece profundos laços e edita dois álbuns através da sua 7 Grand Records. Houve muita pressão dos fãs e dos media para que Gangstarr voltasse, mas sempre que Guru abordava o assunto parecia ficar mais claro que dificilmente os excelentes MC e DJ se iriam encontrar de novo em estúdio.

Tristemente, a 28 de Fevereiro de 2010, Guru sofreu um ataque cardíaco, adoeceu, descobriram-lhe um cancro, esteve algum tempo em coma e várias situações desagradáveis eclodiram com Solar, que se assumia quase como porta-voz de Guru. Lamentavelmente, não chegava a tragédia que se abatia sobre o lendário rapper e estalava a polémica com Solar que, segundo sempre foi veiculado, pretendia lucrar com a situação de Guru e assenhorar-se de alguns direitos do legado do rapper. Infelizmente, Guru sucumbiu à doença e o seu coração parou a 19 de Abril de 2010...



Não sei se se passou como Saramago dizia ou se Guru passou de um estado para o outro ou se está no paraíso ou se assumiu uma outra forma para estar presente neste mundo. O que eu sei é que Guru está vivo. Na música que nos deixou. Na lembrança que temos dele. Guru está na galeria dos mais geniais rimadores do rap e das pessoas mais influentes de sempre da História do Hip Hop. Não há erro algum que possa ter cometido que faça com que isso deixe de ser a verdade. Partiu cedo demais... Se Guru está no paraíso, Deus tem de certeza uma predilecção secreta pelo rap e fomenta um qualquer projecto grandioso para todos os que chamou tão cedo para junto de Si. Não obstante isso, e socorrendo-me de uma brilhante ideia musicada por Fuse, e que se adapta perfeitamente ao caso do rapper americano, se Guru faleceu no mundo físico, ele há-de ser eterno nos nossos ouvidos!

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